A expressividade da imigração árabe para o Brasil pode ser vislumbrada por meio das palavras do professor honorário do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP), falecido em março de 2012, o geógrafo Aziz Nacib Ab’Saber: “no conjunto atual da população brasileira, existe um representante do mundo árabe para cada 150 brasileiros, e mais dois descendentes para igual número de nacionais. (FUNDAG, 2000)
Entretanto, mergulhando um pouco mais a fundo na possível influência dos povos árabes na cultura brasileira, percebe-se que falar sobre essa presença é ir muito além de censos e registros de fluxo migratório.
O ponto de partida de nossos vínculos é anterior ao estabelecimento de relações diplomáticas entre Brasil e Egito, ou às viagens do imperador Dom Pedro II ao Líbano. Suas origens situam-se mesmo antes do fluxo migratório de sírios e libaneses desde as últimas décadas do século XIX. Na verdade, a mentalidade, a arte, a técnica e a cultura material árabes estão presentes desde a gênese ibérica do Brasil colônia. (CHOHFI, 2000) [17]
E ainda:
Para o Brasil é provável que tenham vindo, entre os primeiros povoadores, numerosos indivíduos de origem moura e moçárabes, junto com cristãos-novos e portugueses velhos. (FREYRE, 2003, p. 256)
Segundo Abreu & Aguilera (2010), a longa permanência árabe na Península Ibérica, que se estendeu do século VIII ao século XV, bem como o “refinamento cultural dos muçulmanos em relação aos hispanos, visigodos e cristãos” (2010, p.8), fizeram com que uma série de traços culturais permanecessem na região peninsular, resultantes desse período de contato sociocultural, incluído, particularmente, o linguístico.
As primeiras incursões dos árabes na Europa se deram no Califado de Muawiya, primeiro Califa Omíada, sendo que as tentativas de ocupação de territórios começaram por volta de 710 na Península Ibérica, e 740, na ilha da Sicília e na Península Itálica. […] Foi na Espanha que os árabes obtiveram suas maiores e mais duradouras conquistas na Europa. […] O processo de arabização na Espanha foi tão intenso que, no século IX, o Arcebispo de Sevilha achou necessário traduzir a bíblia para o árabe, que seria usada pelos cristãos espanhóis, tal era a difusão da língua árabe na Península Ibérica. A palavra Moçárabe, que vem do árabe Mustarib (arabizante), era utilizada para designar os cristãos e judeus na Espanha que falavam árabe. (BELTRÃO, 2000, p.46, p. 48-50)
No século VIII, a Península Ibérica viu florescer uma civilização que se tornou um importante centro cultural, mantendo relações diplomáticas com os reinos cristãos, até mesmo com o Império Bizantino. Córdoba, Sevilha e Granada, outrora chamadas de Qurṭuba, Ishbiliya e Gharnāṭah, foram algumas das testemunhas de um período conhecido como al-Andalus e que se estendeu por quase 8 séculos na Península Ibérica. Para se ter uma ideia do quão próspero foi este período, vale mencionar que Córdoba passou a ser conhecida como “O ornamento do mundo”, epíteto dado por Roswitha de Gandersheim, poetisa de origem germânica, para quem o brilho daquele mundo e a luz que lançava ao resto do universo em pleno século X, transcendiam as diferenças religiosas.
No período das grandes navegações, o Novo Mundo assimilou parte da cultura árabe que havia sido trazida pelos espanhóis e portugueses, e hoje a sua influência é visível em traços do cotidiano. O café, por exemplo, foi introduzido pelos árabes na Europa, assim como o cultivo do arroz, alimento tipicamente chinês, mas que conquistou o resto do mundo pelos árabes. Igualmente na arquitetura sul-americana, é possível encontrar traços da cultura árabe trazida pelos ibéricos no uso dos azulejos decorativos, no chafariz, nos pátios floridos e nos detalhes em arabescos.
O Nordeste e os Gerais do Estado de Minas convivem com o efeito residual de oito séculos de dominação árabe na Península Ibérica, desde a Baixa Idade Média até a boca do Renascimento. Ou seja, enquanto os bisavós do Sr. Mazaropi eram educados pelos bárbaros cristãos, em todo o Velho Continente, a Península Ibérica (Portugal e Espanha) recebia uma sofisticada educação, com a cultura moçárabe. É que o povo árabe, naquele momento, era a sociedade mais culta do planeta. E encontramos esses oito séculos de cultura no sertanejo analfabeto. Seus antepassados chegaram ao Brasil nos séculos 16 e 17. No Nordeste e nos Gerais, empobreceram, tornaram-se analfabetos, mas tanto amavam a herança moçárabe dos avós que começaram a dançar cultura, cantar cultura, falar cultura. E a ler conceitos metafísicos nos eventos do dia-a-dia; a fazer pentimento, sobrepondo à dura paisagem nordestina chaves de conhecimento esotérico; e uma humorada Weltanschauung que sobrevive à miséria, estabelecendo eixos filosóficos na sintaxe de uma língua têxtil. [18] (Tom Zé, músico brasileiro)
Estudos sobre assuntos os mais variados, tais como a história de instrumentos musicais ou a origem de iguarias que fazem parte do cardápio do povo brasileiro revelam algumas curiosidades relacionadas a essa influência cultural. Entre elas, por exemplo, está a introdução de um instrumento de percussão africano de origem árabe ao samba, conhecido como adufe[19], um instrumento folclórico membranofone, de percussão, também chamado adufo. De origem moura, trata-se de uma espécie de pandeiro quadrado, sem os discos de metal, oco e de madeira leve, que se toca com os dedos, sustentado pelos polegares, e que aparece em festas tais como Folia-de-Reis, Folia-do-Divino, Congadas, entre outras.
Na alimentação, é possível recordar o alfajor (castelhano), um doce tradicional da Espanha, Argentina, Chile, Peru, Uruguai e outros países ibero-americanos, cujo nome vem do árabe al hasu, que significa recheado. Também o “alfenim”, doce encontrado no interior do Goiás, ou de alguns estados do Nordeste, definido por Luís da Câmara Cascudo como “uma massa de açúcar, seca, muito alva” em forma de animais, flores, cachimbos, peixes. Essa palavra vem do árabe al-fenid ou al-fanid, e significa branco ou alvo. Segundo Cascudo (Apud VALENTE, 1995, p. 141), o Alfenim foi muito popular em Portugal nos fins do século XV e princípios do século XVI, tendo sido citado em obras de Gil Vicente e de Jorge Ferreira de Vasconcelos.
A influência nos idiomas português e espanhol pode ser notada em uma infinidade de palavras, tais como açougue, tambor, arroba, cenoura etc. Cabe destacar que a grande maioria das palavras iniciadas por “al”, artigo definido na gramática do idioma árabe foi sendo incorporado por nossos antepassados. Como bem apontou Antônio Houaiss:
Na verdade, é Idade Média para o ocidental, mas, para o árabe, é o período de esplendor. Essa diferença explica, então, este fenômeno muito singular: num total de três mil a três mil e duzentas palavras do português primitivo, há, no mínimo, oitocentas palavras de origem árabe. Numa estatística verbal, contemporânea de então, é impressionante o acervo de palavras árabes que existiam vivas no português. Representam algo em torno de 25% do vocabulário da língua portuguesa primitiva. E essa estatística toma em conta, também, os vocábulos então recém-derivados. (HOUAISS, 1986).
Também Abreu & Aguilera (2010, p. 12) oferecem exemplos “facilmente observáveis” no vocabulário de origem árabe.
Alguns vocábulos possuem x- inicial, como é o caso de: xá, xadrez, xairel, xaque, xará, xarque, xeique, xerife, xarifa, xaroco, xarofa, xarope, xaveco, xeique, xiita etc, e influenciaram os representantes de numerosos termos latinos com ex-, como: enxame, enxuto, enxada, enxó, enxugar, enxúndia e enxofre. Outros vocábulos iniciam com enx-, como os seguintes: enxaqueca, enxadrez, enxarope, enxávena, enxeco, enxoval, enxovia etc. Um grupo numeroso de vocábulos se caracteriza pela terminação, entre essas estão os termos que terminam com i-tônico: aleli, alfarqui, alizari, arabi, bafari, carmesi, garabi, haji, huri, javali, maçari, muçurumi, rafadi etc. Em muitos casos, o sufixo i- é transformado em il: adail, aguazil, alcil, alvazil, anafil, anil, arrabil, candil, cordovil, granadil, manchil, maravedil, marroquil etc. E há casos em que o sufixo i-muda para im: alabardim, alecrim, alfenim, alfolim, alfonsim, anexim, benjoim, borzeguim, cansim, carmesim, celamim, cetim, gergelim, haquim, jasmim, marfim, mirabolim, muslim, muezim, talim etc. Além desses, há casos de palavras que terminam em sílabas como afe, -afre, -efe ou -aque, que não são empregadas em final de vocábulos latinos. (idem, p. 12)
Truzzi (2007), em artigo sobre a presença árabe na América do Sul, lembra que ela já era realidade neste continente muito antes da imigração inaugurada ao final do século XIX. Segundo ele e outros pesquisadores, no Brasil, ela já se insinuava por meio de vínculos religiosos, ocasionada pelos africanos muçulmanos malês na Bahia escrava desde o século XVIII [20] (RIBEIRO, 2011). E ainda, antes disso, também pode ser identificada tal influência à época do início da colonização portuguesa tanto na língua, quanto na música, culinária, decoração e vestuário, para citar alguns exemplos.
Seja por sua profunda influência em Portugal, seja pela forte imigração no último século, a cultura árabe tem presença garantida na história e na sociedade brasileiras. Junto com os colonizadores, no século XVI, desembarcaram heranças de sua língua, música, culinária, arquitetura e decoração, técnicas agrícolas e de irrigação, farmacologia e medicina. É que os árabes dominaram por quase oito séculos a Península Ibérica. Significativamente, Granada, seu último reduto em solo europeu, foi conquistada pelos cristãos em 1492, mesmo ano em que Colombo chegava à América. (TRUZZI, 2009)
Em seus argumentos, Truzzi inevitavelmente remete o leitor a Gilberto Freyre, que, em 1933 ao publicar Casa Grande & Senzala, sinalizou para a importância do contato entre os portugueses e mouros durante a Idade Média, o que teria sido fundamental para que os lusitanos realizassem com sucesso a empreitada das grandes navegações.
A dualidade na cultura e no caráter dos portugueses acentuou-se sob o domínio mouro, e uma vez vencido, o povo africano persiste sua influência através de uma série de efeitos da ação e do trabalho dos escravos sobre os senhores. A escravidão a que foram submetidos os mouros e até moçárabes, após a vitória cristã, foi o meio pelo qual se exercem sobre o português decisiva influência, não só particular do mouro, do maometano, do africano, mas geral, do escravo. […] Sem a experiência moura, o colonizador teria provavelmente fracassado nessa tarefa formidável. (FREYRE, 2003, p. 285)
Em uma direção semelhante, ao publicar em 1936, Sobrados e Mucambos, Freyre deu sequência ao desenvolvimento de ideias apresentadas anteriormente, sobre o embate entre o Ocidente e o Oriente, no Brasil, durante o século XIX, mantendo sempre o argumento de que a cultura brasileira teria sido gerada a partir de uma matriz oriental de valores, hábitos e conceitos sobre o mundo. Em outras palavras, em sua obra é possível identificar um pensamento acerca de uma orientalidade e de um amouriscamento do Brasil.
Uma importante população muçulmana livre permaneceu, sobretudo, no sul lusitano reconquistado pelos senhores cristãos. Nas cidades, ela habitava as mourarias, como os judeus viviam nas judiarias. Mouros capturados no Mediterrâneo e trazidos de outras regiões da Península Ibérica trabalhavam igualmente como cativos em Portugal. O domínio da escravização do muçulmano levou a que, na língua portuguesa, mouro se tornasse sinônimo de cativo. (MAESTRI, 2006, p. 102)
A obra de Freyre permite reunir um conjunto de informações sobre como esta presença moura persistiu na vida íntima do brasileiro desde os tempos coloniais até os dias de hoje, a partir de sua permanência na Península Ibérica.
Através desse elemento moçárabe é que tantos traços da cultura moura e mourisca se transmitiram ao Brasil. Traços de cultura moral e material. […] Diversos outros valores materiais, absorvidos de cultura moura ou árabe pelos portugueses, transmitiram-se ao Brasil: a arte do azulejo que tanto relevo tomou em nossas igrejas, conventos, residências, banheiros, bicas e chafarizes; a telha mourisca; a janela quadriculada ou xadrez; a gelosia[21]; o abalcoado; as paredes grossas. Também o conhecimento de vários quitutes e processos culinários; certo gosto pelas comidas oleosas, gordas, ricas em açúcar. O cuscuz, hoje tão brasileiro, é de origem africana. (FREYRE, 2003, p. 298)
De forma semelhante, Câmara Cascudo (2001, p.15), também identificou traços da presença árabe na cultura brasileira. E, assim como Gilberto Freyre, optou pelo termo mouro ao invés de árabe, pois, segundo ele, sua intenção era falar sobre aquele que viajou para o Brasil na memória do colonizador e que aqui ficou. Segundo ele, a opção pelo uso da palavra mouro, ao invés de árabe ou sarraceno, deve-se ao fato de que este era mais constante na Península Ibérica:
[…] lembrando os berberes, mouros históricos, reinando na Espanha, vivos na recordação lusitana, Ifriqiya e Maghreb. No Brasil, árabe tomou-se genérico nas últimas décadas do século XIX com a emigração da Síria e do Líbano, nominal popularíssimo, inclusive com o falso sinônimo de turco, vendedor ambulante que seria também o regatão, familiar nos rios amazônicos. O sarraceno não se aclimataria no linguajar nacional. (CASCUDO, 2001, p. 12)
Nessa direção, o folclorista recorreu aos costumes populares e à literatura para localizar traços da presença árabe na cultura brasileira. Segundo o próprio autor, “mais uma vez os meus Mouros e Judeus procuram olhos contemporâneos para avivar-lhes as distantes reminiscências imemoriais, inconscientes, vivas, atrás da cortina do passado”. (CASCUDO, 2001, p. 9)
Argumentava que o mouro fora expulso do Algarve duzentos e cinquenta anos antes da vinda portuguesa para o Brasil. E, na Espanha, a saída dos muçulmanos levou ainda mais tempo, tendo sido necessário aguardar até 1492 para que o reino de Granada se tornasse castelhano, mesmo ano em que Cristóvão Colombo daria início a sua jornada em direção ao Novo Mundo.
Tema que se faz presente em praticamente toda a obra folclórico-etnográfica e histórica de Câmara Cascudo, a alimentação popular, em sua “normalidade” ou “dias festivos”, traduz-se em matéria quase obrigatória do seu interesse investigativo. Além da constância no conjunto dos estudos cascudianos, ganham relevo suas obras devotadas exclusivamente ao tema, como A cozinha africana no Brasil. (AVIGNAC & OLIVEIRA, 2010)
Dentre os aspectos culturais que podem ser atribuídos aos mouros, está, entre outros, o de beber depois de comer (e não durante a refeição), sentar-se sobre as pernas dobradas (segundo ele, de cócoras era influência indígena) etc. Para Cascudo, a mulher botando pano na cabeça é costume mouro, assim como o uso de turbante em penteados femininos no Brasil. Em seu argumento, graças à longa convivência forjada por moçárabes, mudéjares e mestiços, tanto a língua espanhola quanto a portuguesa são fortemente tributárias do árabe.
Mouros livres viviam em Portugal, após a Reconquista, e judeus migraram para Portugal, desde a Espanha, após 1492. Em Portugal, mouros e judeus foram obrigados a converter-se, originando a população de cristãos-novos. Mouros cativos seguiram sendo introduzidos em Portugal, sendo superados pelos negro-africanos, em fins do século 15. Chamava-se de “mourisco” o mouro convertido livre, liberto e escravizado. A historiografia portuguesa pouco atenção deu às minorias históricas. O artigo comenta o importante livro de Isabel Braga, Mouriscos e cristãos no Portugal quinhentista: duas culturas e duas concepções religiosas em choque, que traça importante perfil da população mourisca, a partir da documentação da Inquisição. Analisa-se também a narrativa histórica da autora como registro das razões que ensejaram o silêncio historiográfico relativo sobre as comunidades luso-judaicas, luso-islâmicas e luso-africanas. (MAESTRI, Mario, 2006, p. 101)
Também é possível recuperar aqui a reflexão do poeta e crítico literário Manoelito Ornellas, o qual publicou, em 1948, o livro Gaúchos e Beduínos: a origem étnica e a formação social do Rio Grande do Sul. O argumento do autor nesta publicação está no fato de que, tanto portugueses quanto espanhóis, antes de povoarem a América, haviam sido fortemente influenciados pelos árabes, berberes e beduínos. E, finalmente, propõe que as raízes dos atuais habitantes da Região Sul se encontram na África do Norte.
Em estudo acerca da luta pela etnicidade no Brasil, o historiador americano Jeffrey Lesser apontou Gilberto Freyre e Luís da Câmara Cascudo como pensadores que estiveram entre o grupo de intelectuais os quais, no século XX, voltaram seus olhos para Portugal em busca de autocompreensão. Ainda que esta busca acerca de uma identidade nacional não tenha sido tarefa exclusiva de ambos os pensadores, Freyre e Cascudo estão entre os que mais contribuíram para a questão da presença árabe no Brasil ao procurarem traços da “presença moura em suas próprias identidades lusificadas”. (LESSER, 2001)
Ao olharem para Portugal com o intuito de compreender o Brasil do século XX, tais autores acabaram por reconhecer e apontar influências mais distantes, quais sejam, aquelas impregnadas na Península Ibérica ao longo de quase oito séculos de presença muçulmana na região. Ambos identificaram o alcance dos chamados mouros também na cultura brasileira, influência esta pouco explorada até os dias atuais.
Muito comum na tradição da ensaística social brasileira, especialmente aquela dedicada à busca e compreensão das chamadas ‘raízes’ do Brasil, tem sido o relativo silêncio em torno da forte presença moura em toda Península Ibérica (século VIII ao XV) e sua enorme importância histórica para o fazimento do povo português. Mesmo aqueles que parecem ter escapado à regra, como Gilberto Freyre e Câmara Cascudo, por exemplo, o fizeram sem a força de uma necessária ênfase fenomenológica, cuja análise pudesse nos oferecer um pouco mais do que o famoso borrão antropológico no perfil da lusitanidade (o conhecido argumento da ‘plasticidade’ portuguesa) ou ainda a coleção – decerto amiúde curiosa – de pequenas notas ‘folclóricas’ no rodapé de nossa história. Mais sintomático ainda é o emprego, em tantos outros autores, do próprio termo ‘moçárabe’ na tentativa de dar relevo justamente ao ‘cristão arabizado’, e não, como talvez fosse mais apropriado, o contrário (ao longo deste ensaio buscarei justificar melhor essa tese). Não obstante a óbvia herança da língua (Bilac: ‘amo-te, assim, desconhecida e obscura’), o que permaneceu mesmo, no fundo, foi sempre uma imagem demasiadamente romanizada do colonizador português, algo de que não escapou, inclusive, toda a sabida perspicácia de um Darcy Ribeiro. (FORTES, 2013, p. 4)
Cabe também citar o catalão Luis Soler, autor do livro Origens árabes no folclore do sertão brasileiro (SOLER, 1995), músico que conviveu com Ariano Suassuna – além de ter sido professor do artista pernambucano Antônio Carlos Nóbrega na época do Quinteto Armorial. Segundo ele, as modalidades do repente nordestino são modalidades de desafio árabes. Soler explica que os árabes introduziram a rima no mundo ocidental, pois a poesia latina contava apenas com a métrica.
Dentre outras influências musicais assimiladas em Portugal através do estreito convívio que cristãos e mouros mantiveram por séculos, e que chegaram até a cultura brasileira é possível destacar o martelo agalopado, o galope à beira-mar, a sextilha, o quadrão e o martelo alagoano, como aponta o músico, pesquisador e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, Ivan Vilela.
Quando os árabes chegaram à Península Ibérica, no ano de 722, os instrumentos de cordas dedilhadas presentes na Península eram as harpas celtas e as cítaras greco-romanas. O oud, também conhecido por alaúde árabe, foi o primeiro instrumento de cordas dedilhadas com braço onde as notas podiam ser modificadas, que chegou à Europa. Curioso observarmos que a viola mantém como característica básica de seu velho ancestral as cinco ordens de cordas. O alaúde árabe tem cinco pares uníssonos e às vezes um bordão só é colocado abaixo das cordas mais agudas para facilitar as respostas entre graves e agudos na melodia. Muitas vezes este bordão é utilizado como um pedal. Normalmente este bordão solo tem a mesma nota que os bordões em dupla. Já a viola, independente do número de cordas que venha a possuir, de cinco a quinze, sempre mantém a ideia das cinco ordens, podendo ser estas simples, duplas, triplas ou até mistas. A partir do enlace cultural de mouros, cristãos e judeus sefarditas, inúmeros instrumentos foram gestados. A fusão que se processou neste período na Península Ibérica foi tal que por volta do século XIII, surgiu a guitarra latina. (VILELA, 2008-2009). [22]
Vilela (2008-2009) também compartilha da tese de Soler, mencionado anteriormente, para quem comumente o “dominador” tende a assimilar mais a cultura do “dominado” que o contrário, pois estes últimos costumam resistir em todas as instâncias à invasão – a qual, além de militar, é também cultural. Nesse sentido, os portugueses, que, na Europa, estão entre os primeiros povos a terem configurado um reino próprio por meio da reconquista de territórios invadidos pelos muçulmanos, passaram a se estabelecer como dominadores, enquanto os árabes que naquela região permaneceram, passaram a ser os dominados.
Importante ressaltar que em seu livro, Soler recorre muito mais a referências bibliográficas espanholas do que brasileiras para tratar desse assunto. Talvez porque, de fato, o tema da presença árabe tenha sido bem menos debatido no Brasil do que na Espanha. Em seu epílogo, Soler justifica a carência de material sobre a presença árabe no Brasil:
[…] Não é de estranhar-se que o peso desta influência tenha deixado de ser avaliado com justiça, habitualmente: os árabes, como indivíduos, representam um elemento irrelevante na colonização do sertão. A história brasileira não os registra aqui. E na hora em que a colonização do Brasil foi iniciada, a história da Península Ibérica era escrita pelo povo que acabava de desterrá-los, ou dizimava ou, no melhor dos casos procurava ignorá-los. Mas 800 anos de domínio político, de caldeamento racial e, sobretudo, de liderança cultural não se apagam de uma hora para outra. (SOLER, 1995, p. 113)
No entanto, dentre os pouquíssimos brasileiros que constam em sua bibliografia, estão, inevitavelmente, Gilberto Freyre e Câmara Cascudo, mas também se encontram Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Hollanda, o primeiro com contribuições pontuais sobre a música do Brasil e o segundo com aportes na história da civilização brasileira.
Também Gilberto Freyre e Câmara Cascudo destacaram que, ao se fixarem em um país fortemente influenciado pela cultura ibérica – e, consequentemente, moura, haja vista que muçulmanos da Península Arábica e do Norte da África estiveram na região hoje conhecida como Portugal e Espanha por aproximadamente oito séculos, tais imigrantes não somente reconheceram traços de sua própria cultura em nossa sociedade, como também não foram tratados como completos estranhos. Em outras palavras, a presença árabe no Brasil antecedeu a chegada dos próprios imigrantes e, possivelmente, contribuiu para evitar um choque cultural quando da sua chegada.
[17] Conforme ressaltado no documento base do Seminário Relações entre o Brasil e o mundo árabe organizado pela Fundação Alexandre Gusmão (FUNDAG) em 2000.
[18] Disponível em: http://www.tomze.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=118%3Aartigo-e-festivo-nao-e-serioq-diz-tom-ze&catid=8%3Aimprensa&Itemid=18. Acesso em: jul. 2014.
[19] João Baptista de Medeiros Vargens, professor de árabe do Departamento de Letras Orientais e Eslavas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor, ao lado de Carlos Monte, do livro A Velha Guarda da Portela (2001) afirma que nas batucadas nos morros do centro do Rio de Janeiro, nos primeiros anos do século 20, o samba foi fortemente influenciado por este instrumento semelhante ao pandeiro, só que em formato hexagonal e sem platinelas, tendo-o ajudado a chegar à batida rítmica que hoje o caracteriza.
[20] A palavra “malê” vem do ioruba “imale”. Era forma de se referir aos os negros mulçumanos que resistiram e reagiram à imposição do catolicismo, mantendo sua crença e cultura na primeira metade do século XIX. Estes muçulmanos eram bastante instruídos e chegaram a organizar inúmeros levantes, sendo que a “Revolta dos Malês” é a mais conhecida delas.
[21] Grade de fasquias de madeira que se coloca no vão de janelas ou portas, para proteger da luz e do calor, e através da qual se pode ver sem ser visto. “Gelosia”. In Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Disponível em: http://www.priberam.pt/dlpo/gelosia. Acesso em: 25 ago. 2014.
[22] VILELA, Ivan. A Viola. Ensaio elaborado especialmente para o projeto Músicos do Brasil: Uma Enciclopédia, patrocinado pela Petrobras através da Lei Rouanet. 2008-2009. Disponível em: http://www.ivanvilela.com.br/pesquisador/ivanvilela-aviola.pdf. Acesso em: jan. 2014.