O regionalismo arquitetônico tem como ponto de partida a análise erudita de um corpus documental situado fora dos repertórios costumeiros da arquitetura erudita. Por isso mesmo, o neoárabe — seja na forma do orientalismo eclético ou na da incorporação de estilismos arabizantes num discurso de caráter nacionalista — só pode desabrochar em Portugal e, sobretudo, no Brasil após a quase completa eliminação (ao menos em aparência) dos marcadores da cultura hispanomuçulmana. Frequentemente designado, na literatura arquitetônica e historiográfica da península Ibérica, como “moçárabe” ou “mudéjar” (Rodríguez Domingo 1999), senão com o termo europeu de “mourisco,” o legado cultural hispanomuçulmano influenciou tanto o ambiente construído vernáculo quanto a arquitetura erudita dos reinos cristãos. Os marcadores dessa cultura arquitetônica pertencem a três esferas:
A estruturação do traçado viário e do parcelamento do solo;
Os modos de articulação entre as esferas comunitária, social e familiar no espaço doméstico; e
O pluralismo temático e estilístico no ornamento arquitetônico, nas artes aplicadas e decorativas.
A supressão gradual dos remanescentes hispanomuçulmanos em cada uma dessas três esferas, sucessivamente e culminando nos séculos XVIII e XIX, apontava para um processo de europeização crescente da cultura portuguesa. Tal supressão tinha, no imediato da conquista portuguesa, um caráter simbólico de substituição do poder islâmico por aquele cristão como na conversão (e por vezes reconversão) de mesquitas em igrejas, remodelando-lhes naturalmente o programa decorativo mas também, em grande medida, a configuração espacial (Dias 1994, 51). Num segundo momento, procedia-se à reorganização do espaço e do parcelamento urbanístico, na esteira dos novos alinhamentos de poder e de formas de convivência entre as três comunidades religiosas — judeus, muçulmanos e católicos. Mesmo no auge da era moderna, contudo, persistiam vestígios vivos, elementos de estilo artístico e de sociabilidade doméstica que evidenciam, ao olhar do historiador, as reminiscências da cultura árabe no mundo luso-brasileiro. A culminação tardia do processo de des-arabização da cultura portuguesa foi resultado inconsciente do movimento neoclássico que vai do período pombalino até o início das monarquias liberais sob D. Pedro I do Brasil e IV de Portugal. Foi, nesse último momento, coetânea do movimento inverso, observado na Europa ocidental, de introdução de motivos orientalistas no repertório da arquitetura eclética.
Tecidos arabizados nos séculos VIII a X, tais como a Alfama lisboeta ou o centro de Évora, formaram-se pela sedimentação e hierarquização da malha viária romana preexistente (fig. 1). O traçado castrense de ruas pouco diferenciadas deu então lugar à hierarquização funcional e espacial entre ruas comerciais de maior largura e adarves residenciais, por vezes formando becos. Equipamentos coletivos — chafariz, madraçal, banhos, locais de devoção — passaram a estar setorizados nessa hierarquia viária segundo a abrangência de seu uso. Em alguns casos, é possível reconstituir um padrão de reparcelamento do solo com lotes compactos, afeito à construção de moradas introvertidas e dotadas de pátio central.
Figura 1: Perímetro da cidade romana de Évora evidenciando a sedimentação do traçado romano. Editado pelo autor com base em mapa de Cristóvão Aires, 1902
O sistema de hierarquia viária e parcelamento do solo característico da arabização cultural e política da península Ibérica constitui mais um tipo de substrato que uma prática persistente na urbanização portuguesa subsequente. O desenho de novos traçados de ruas e de novas subdivisões da propriedade do solo constitui o aspecto do desenvolvimento mais diretamente sujeito às intenções políticas do poder vigente e ao sistema de referenciais técnicos que este poder detém. O modo arabizado de estruturar o espaço urbano resultava, na península Ibérica, numa ordem urbana em três níveis:
Alcáçova, sinalizando o centro do poder político e demarcando a presença islâmica por excelência, é o núcleo fortificado dominante do conjunto urbano, podendo conter também as residências da elite governante e, mais raramente, a mesquita maior (Mazzoli-Guintard 2000, 138–40);
Almedina, cidade amuralhada, frequentemente correspondia à sedimentação de um traçado romano preexistente, e se dividia, conforme o permitissem as dimensões e a configuração do traçado, em distritos tendendo a agrupar as diferentes comunidades religiosas de muçulmanos, judeus e cristãos;1
Arrabaldes, estendendo a mancha urbana para além da cerca, organizavam-se mais nitidamente em função de atividades econômicas — comércio e artesanato — do que em torno de equipamentos e atividades comunitárias.
A reurbanização árabe do substrato romano formou, portanto, característicos sistemas de distritos com elevada identidade formal e social, sendo amplamente autogeridos pelas diferentes comunidades religiosas — aljamas —, quando não pelas corporações de ofício, que neles mantinham e controlavam as suas respectivas “liturgias do cotidiano” (Bianca 2000, 27–29). Tais distritos, adensando-se organicamente e tendo sua infraestrutura em grande parte controlada pela própria organização comunitária (Bianca 2000, 39), eram circunscritos por ruas comerciais e pelas cercas urbanas que, juntamente com a mesquita maior e o mercado, sinalizavam a presença de uma autoridade política superior.
Esse modo de organizar a gestão do espaço urbano, antes que a sua forma, resultou numa configuração de ruas principais delimitando extensas quadras pouco permeáveis, por sua vez subdivididas por sistemas secundários de adarves e largos para formar blocos de lotes e casas. Os pontos focais dessas quadras são cruzamentos ou pequenos largos onde se situavam equipamentos comunitários, tais como bicas ou locais de culto, e por vezes algum comércio (Mazzoli-Guintard 2000, 98).
Reurbanização afonsina
Como seria de se esperar, dada a persistência dos traçados viários na longa duração (Lavedan 1926), essa característica segregação espacial em vários níveis persistiu nas cidades hispanomuçulmanas incorporadas ao reino de Portugal. Para além da resiliência de traçados preexistentes, todavia, a lógica de distritos circundados por um traçado estruturador e contendo, em seu interior, um traçado viário secundário, continuou a comparecer em sítios urbanos portugueses fundados ou ocupados dos séculos XIII e XIV em diante.
A judiaria de Castelo de Vide, assentamento extramuros atestado no século XIV, é um dos mais antigos exemplares de urbanização na forma de uma quadra de blocos no reino de Portugal da dinastia afonsina. O distrito é nitidamente delimitado ao sul pela rua de Santa Maria, traçado estruturador do crescimento urbano sobre a linha de cumeada, e ao norte pela encosta onde, no século XVII, seria construída uma nova cintura defensiva. A malha viária interna ao distrito converge num largo central onde se situa uma bica (fig. 2). Já na dinastia de Avis, e num contexto livre das restrições espaciais que caracterizam as judiarias, o crescimento do núcleo urbano de Angra do Heroísmo, no século XV, resultou em configuração semelhante. Dois traçados viários estruturadores, aproximadamente paralelos, foram conectados por uma rede secundária de adarves, “ruas de trás” (Teixeira 2012) e largos introvertidos.
Figura 2: Reconstituição da judiaria de Castelo de Vide (Alto Alentejo) no século XV, mostrando o traçado estruturante que delimita um bloco de quadras (sombreados em rosa) delimitados por ruas da frente (tracejado) e contendo ruas de trás (ruas sem tracejado). Desenho do autor
Se a ocupação urbana hispanomuçulmana operou sobretudo uma sedimentação dos traçados e parcelamentos de origem romana, a reorganização territorial da conquista portuguesa implicou, por sua vez, modificações profundas na estruturação dos tecidos urbanos. Ao mesmo tempo, as práticas urbanísticas que viriam a configurar uma “tradição luso-brasileira” (Lobo and Simões Júnior 2012) incorporaram aspectos da hierarquização do espaço público de extração árabe, assim como operaram ajustes graduais em parcelamentos do solo preexistentes. Tais aspectos são mais perceptíveis na cidade portuguesa enquanto tipos de substrato (Conceito desenvolvido por Caniggia [1981] 1997) do que como práticas persistentes após a conquista. Ainda assim, subjazem a concepção da cidade luso-brasileira enquanto traçado fragmentado e de baixa acessibilidade (Medeiros 2006).
Entretanto, a reorganização territorial da Coroa portuguesa sob a dinastia dos Borgonhas, de meados do século XIII ao primeiro quartel do XIV (Trindade 2013), se caracterizou pela introdução de um saber fazer urbanístico oriundo do Norte da Europa. Esse saber fazer se impôs a tecidos urbanos de origem predominantemente romana e apenas parcialmente arabizados. A política urbanizadora levada a cabo por D. Afonso III e D. Dinis (fig. 3) apresenta, tanto no processo quanto na morfologia, características das coetâneas bastides erigidas pelas autoridades inglesas e francesas no atual sudoeste da França, fundamentalmente redutíveis aos propósitos de controle administrativo e militar do território, e de expansão da base agrária (Falini 1978, 99).
Figura 3: Vila de fundação de Caminha, Minho. Esquerda: planta reconstituída da cidade no século XIII, baseada em Trindade (2009, 140); direita: hipótese de esquema modular ideal
A sobreposição ou justaposição das novas práticas aos tecidos históricos interrompeu a vigência de processos de transformação urbana de herança hispanomuçulmana, sobretudo no que dizia respeito à configuração dos lotes de moradas. A transformação mais marcante sofrida pelo urbanismo hispanomuçulmano em Portugal disse respeito, portanto, ao parcelamento do solo.
A tipologia do parcelamento do solo nas vilas de fundação afonsinas baseava-se numa distribuição relativamente igualitária de lotes urbanos, de casais ou chácaras suburbanas, e de glebas cultiváveis (Falini 1978, 102). Tal configuração seria, por princípio, avessa ao modo de urbanização árabe ao prever o controle centralizado do poder político sobre a ocupação do espaço urbano. Forçava-se, assim, não apenas a exteriorização do controle sobre a subdivisão do solo, mas também, e principalmente, a exteriorização de atividades da alçada doméstica e comunitária para ruas e largos com um caráter público mais marcado.
Tal reformulação não se limitou às vilas de fundação, estendendo-se também ao reparcelamento de núcleos urbanos preexistentes, aquando da expulsão de comunidades mudéjares para os arrabaldes e da ocupação dos espaços intramuros por populações cristãs.2 Aos lotes largos e compactos que permitiam a implantação das casas com pátio na tradição árabe-mediterrânica, a redistribuição fundiária levada a cabo pelo conquistador português substituiu os lotes estreitos e profundos do urbanismo norte-atlântico, mesmo nas ensolaradas regiões do Alentejo e do Algarve.
A terminologia urbanística de al-Ândalus é notoriamente inconsistente. Mazzoli-Guintard alerta sobre a ocorrência intercambiável dos substantivos qā’ida, almedina, qarya e ḥiṣn, que designam diferentes posições hierárquicas ou importâncias dos núcleos habitados. Apenas o conceito de almedina tende a estar preferencialmente associado a uma sede de poder político e, nesse sentido, por vezes se confunde com o papel político da alcáçova (Mazzoli-Guintard 2000, 25, 35).↩︎
Ao contrário do ocorrido com a imediata deportação das comunidades muçulmanas para fora dos espaços urbanos privilegiados, a reorganização dos espaços tradicionalmente ocupados pelas comunidades judaicas em verdadeiras judiarias reclusas e fortemente adensadas só se efetivaria de finais do século XIV a meados do XV (Trindade 2009, 626).↩︎
O tipo edilício de base, a casa vernácula resultante desse reparcelamento, foi no Norte e no Centro de Portugal inteiramente emancipada de reminiscências mudéjares. Desde a região saloia, nos arredores de Lisboa, até o extremo sul de Portugal, por outro lado, o substrato do parcelamento e da implantação da casa árabe deixaram sutis vestígios. A açoteia algarvia — terraço habitável — é o elemento mais evidente dessas persistências, mas não necessariamente o mais representativo das persistências nos modos de morar; apesar de ser uma componente significativa do uso dos espaços residenciais, no entanto, ela será tratada mais adiante como uma característica plástica.
A redistribuição fundiária intramuros nas cidades hispanomuçulmanas conquistadas por Portugal participou da introdução mais generalizada da configuração habitacional germânica no Sul da Europa no medievo, tendo como uma de suas características amplamente difundidas a substituição do pátio interno à morada por um largo comunitário (Schmidt 1978, 93).
A genealogia das formas de sociabilidade doméstica é, no entanto, mais sutil e incerta que a da morfologia física do espaço urbano, sobretudo porque o uso funcional das células dentro da habitação é extremamente fluido, e porque os conceitos de atividades domésticas hoje em dia empregados na descrição e no planejamento das moradas podem diferir amplamente daqueles percebidos no passado. A propalada prioridade dada à sociabilidade doméstica sobre a institucionalidade pública no mundo árabe é ela própria em certa medida um ruído amplificado pelo olhar orientalista europeu do século XIX, que associava a domesticidade à passividade, e esta ao caráter fundamental da civilização árabe (Jarrassé 2006, 84).
No que respeita ao espaço urbano arabizado na bacia do Mediterrâneo medieval, será mais preciso afirmar que as normas e relações influindo nas redes comunitárias de sociabilidade precedem — conceitualmente, senão juridicamente — as relações dos indivíduos com o estado. Tal arranjo não é, observe-se, de todo estranho à organização corporativa das cidades da Europa cristã na mesma época.
Em qualquer caso, verifica-se na morada ibérica um padrão de domesticidade mais reclusa, com filtragem gradual do acesso desde o exterior até o núcleo familiar. As matrizes romana e árabe deste arranjo baseiam-se no percurso, axial no primeiro caso, tortuoso no segundo, que levam de um um adarve ou azinhaga pouco trafegados (Alarcão 2008, 142) para um andron ou vestíbulo no ingresso, através de uma átrio ou pátio (sahn), até um salão principal semiaberto (tablinum ou iwan) usado para recepção de visitas; fora deste percurso de circulação social, situavam-se os aposentos privativos da família, na periferia da casa ou em pavimento superior. Essa organização persistiu, com algumas modificações, nas casas de morada do sul da Espanha.
A redistribuição dos imóveis urbanos em Portugal após as conquistas da dinastia afonsina, resultando em parcelas de frente estreita, eliminou em grande parte a possibilidade de organização centralizada da casa em torno de um pátio (Palma 2016, 55). Não obstante, os tradicionais tipos de habitação urbana portuguesa que emergiram a partir desse período, especialmente no centro-sul do país e nas moradas mais abastadas, permitiriam a organização do espaço doméstico segundo os gradientes de privacidade da casa arabizada (fig. 4). Esta adequação permaneceu ainda mais evidente na casa de morada urbana atestada no Brasil desde o período colonial até a segunda metade do século XIX.
Figura 4: Casa dos crivos ou das gelosias, Braga, século XVII. Foto: Direção-Geral do Património Cultural (DGPC n.d.)
De fato, a baixa densidade da maioria dos núcleos urbanos de origem portuguesa no Brasil, bem como seu caráter de assentamentos primevos, portanto não constrangidos por um tecido edificado preexistente, ofereciam a possibilidade do completo desdobramento da lógica de ocupação do espaço doméstico na morfologia das casas a serem edificadas. Mesmo no Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX ainda teria sido possível averiguar a continuidade desse sistema de privacidade.
O pintor e decorador francês Jean-Baptiste Debret publicou, de 1834 a 1839, três volumes de memórias, por ele mesmo ilustradas, de sua estadia no Rio de Janeiro (Debret 1834–1839). Ele lá residira de 1816 a 1831, a serviço da corte portuguesa e depois brasileira, como pintor de história e professor da Academia Imperial de Belas-Artes, instalada em 1826. Debret registrou, em suas memórias, instigantes observações e litografias caracterizando a arquitetura do Rio de Janeiro, tanto com comentários explícitos quanto ao estilo ou ao uso dos espaços, quanto com interesses e curiosidades que podem ser discernidos nas litografias.3
Debret, já bastante aclimatado ao modo de vida brasileiro e dotado de agudo senso de observação dos costumes, registrou que o principal espaço de socialização familiar na morada rural e suburbana era a varanda. Este espaço assumia sua importância, sobretudo, no convívio informal do “pós jantar” (fig. 5), em contraste com a socialização formalizada que teria lugar no “salão” (Debret 1835, 2:42–43). Na casa urbana, fosse ela térrea ou assobradada, o espaço que ele designava como “salle à manger” (sala de jantar) ocupava a mesma posição espacial e funcional que a varanda (Debret 1839b, 3:214).
Figura 5: Jean-Baptiste Debret. Descanso na varanda após o jantar. Litografia. New York Public Library (Debret 1835, pl. 8; Debret and Thierry frères 1835)
A morada luso-brasileira como reminiscência da domesticidade árabe
A configuração típica da casa de morada instaurada no Brasil colonial derivava, em grande parte, da habitação urbana feita de células de pequenas dimensões, atestada em Portugal desde a Beira baixa até o Alentejo. Esta apresenta uma distribuição com um reduzido número de ambientes principais de pequenas dimensões, com distribuição compacta transversal e longitudinalmente. Nos casos de desdobramento em habitações de frente larga (fig. 6), isto é, com mais de uma célula na frontaria, pode haver a introdução de um corredor longitudinal. Células dispostas no miolo da construção formam alcovas, desprovidas de janelas para o exterior (Ver Palazzo 2018).
Figura 6: Jean-Baptiste Debret. Planta de morada urbana no Rio de Janeiro. Biblioteca Pública de Nova York (Debret 1839b, pl. 42, 1839a)
A setorização da morada colonial luso-brasileira dizia respeito menos à localização, em caráter permanente, de atividades específicas a cada célula, e mais à espacialização dos gradientes de privacidade doméstica. Na ausência de adarves e pátios a filtrar o acesso à morada, as salas situadas junto à fachada cumpriam o papel de interface entre o espaço doméstico e o domínio público: por vezes eram dedicadas à recepção de visitas ou de clientela, mas seriam mais frequentemente um vazio funcionando como “tampão” entre o espaço público urbano e o resguardo doméstico.
A porta principal permaneceria sempre aberta, sinalizando assim o papel de espaço de transição desempenhado por esta primeira faixa de células. A figura literária da matriarca debruçada à janela ou sentada nos bancos diante da fachada é um tema recorrente no interior do Brasil, evidenciando a importância dessa zona fronteira na afirmação dos vínculos intracomunitários.
Uma segunda porta, esta sempre fechada, nos fundos da sala ou ao longo do corredor estruturante, demarcava a zona intermédia da morada, reservada ao uso da família. Consistia predominantemente num certo número de alcovas, dispostas com suas aberturas para o corredor ou para os ambientes ventilados mais próximos, como que a enfatizar o caráter de reclusão desses espaços.
O percurso ao longo do eixo distributivo da casa colonial brasileira terminava, aos fundos, numa grande sala comunitária conhecida como varanda (fig. 7). Esta era, com frequência, semiaberta com um avarandado que dava sobre o quintal, justificando, assim, seu nome. Tratava-se do principal espaço de convivência familiar — inclusive os escravos do serviço doméstico —, apto a receber diversos usos conforme a disposição da mobília: refeições, trabalho doméstico, preparo de alimentos, etc.
Figura 7: Varanda na casa-grande da fazenda Babylonia, Pirenópolis (Goiás), primeira metade do século XIX. Foto: Leon Ivan Dodriac, 2018
A distribuição da morada luso-brasileira evidenciava, portanto, a segregação entre a sociabilidade doméstica e aquela pública, cujos espaços de convívio estavam implantados nos extremos opostos da casa. Essa aparente simetria morfológica não supunha, porém, uma equivalência funcional. A interface com a comunidade externa à família no âmbito da casa era um aspecto secundário diante de outras esferas de socialização comunitária — e sobretudo da igreja. A vivência doméstica, por outro lado, seria contínua e predominante, uma vez que parte da população do lar — mulheres, crianças, escravos de afazeres domésticos — tinham menos oportunidades ou possibilidades socialmente admitidas de convívio público.
Dessa segregação espacial entre as esferas comunitária e familiar resultava o aspecto pacato, senão deserto, das cidades menores, que impressionou viajantes estrangeiros como o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, o qual atravessou o Brasil central em 1818. Ele explicou o grande número de moradas urbanas encerradas em vilas e arraiais do interior de Goiás pelo fato de que mesmo a população urbana dedicava-se predominantemente à agropecuária. No entanto, essa afirmação não se aplicaria, decerto, a toda a população urbana: crianças, idosos e, nas famílias mais bem postas, também mulheres jovens e escravos do lar não se aplicariam à faina do campo. Sua eventual ausência da cidade, ou, indiferentemente, sua possível reclusão em casas urbanas fechadas para o exterior, evidenciava que esses grupos sociais, domésticos por excelência, tendiam a não estabelecer vínculos com a esfera pública sem a mediação dos chefes da família.
Tal arranjo social persistiu no Brasil, mesmo com a maior inserção das mulheres no mercado de trabalho e na socialização pública em geral. Ele se reflete, ainda na segunda metade do século XX, na presença de um “estar íntimo” indicado nas plantas de habitações da classe média alta, releitura espacialmente peculiar das family rooms norte-americanas.
Para uma discussão do livro de Debret versando sobre seu olhar histórico-cultural sobre o Brasil, incluindo sua posição ambivalente acerca da escravidão e da cultura indígena, ver Lima (2007).↩︎
O lugar periférico do ornato hispanomuçulmano na historiografia portuguesa
O estudo das reminiscências islâmicas na morfologia do espaço urbano e doméstico luso-brasileiro caracteriza um processo de emersão, relativamente recente, de um conhecimento arqueológico e teórico especializado. Em contrapartida, a presença de elementos arabizados na cultura visual portuguesa, mormente em suas artes decorativas — alternadamente descritos com as alcunhas de “mourisco,” “moçárabe” ou “mudéjar” —, foi objeto de debates ideológicos e políticos desde o século XIX. Em vez de se pretender uma descrição factual da cultura material hispanomuçulmana em Portugal, objeto fartamente documentado e debatido, além de profundamente revisitado nas décadas mais recentes, não se propõe a seguir, portanto, mais do que um apanhado de certos pontos relevantes no próprio debate historiográfico.
O estudo da influência muçulmana na cultura material do mundo português, especialmente quanto à sua componente de obras de arte monumental ou decorativa, tem padecido de uma prevenção que lhe imputa uma inferioridade quantitativa e qualitativa com respeito ao legado muçulmano na Espanha. Não faz muitos anos, dois dos mais renomados investigadores da presença islâmica em Portugal ainda podiam resumir com o trecho que segue o senso comum sobre o legado material da cultura hispanomuçulmana:
É certo que a islamização nunca teve, nas regiões do extremo ocidental da Península Ibérica, a exuberância das grandes cidades andaluzas. A ausência de peças arquitectónicas de notória monumentalidade, como a mesquita de Córdoba ou a Giralda de Sevilha, contribuiu também para uma certa desvalorização dos cinco séculos e meio da História de Portugal que correspondem a este período. (Torres e Macias 1998, 13)
Neste retrato de al-Gharb al-Ândalus como uma terra artisticamente estéril, apenas recentemente refutada pela arqueologia, sobressai a narrativa de uma (re)importação tardia da arte mudéjar para o reino de Portugal a partir da Espanha já unificada sob os reis católicos, devida ao vínculo matrimonial do rei D. Manuel I com Isabel de Aragão em finais do século XV. O “surto mudéjar” manuelino (Dias 1986) é fato inconteste cujos fartos e brilhantes frutos podem ser vistos em sítios tão distantes entre si quanto o paço da vila de Sintra e o chamado paço de D. Manuel em Évora (fig. 8), ambos reformados por ordem do rei no primeiro Quinhentos, além da profusão de azulejaria sevilhana ou de suas imitações nacionais por esse período.
Figura 8: Galeria das Damas, paço de D. Manuel, Évora, primeira década do século XVI. Foto do autor
Tal interpretação, levantada a partir de meados do século XIX, fazia porém do “mudejarismo” português no seu todo um empréstimo erudito e diplomático à Espanha cristã, contribuindo, no dealbar da arqueologia científica, para que se desconsiderasse o período islâmico em Portugal como um mero hiato histórico. Reafirmava, outrossim, uma narrativa autodepreciativa da identidade artística portuguesa, vista como carente de organicidade entre o popular e o erudito, e tendo por consequência o seu percebido atraso industrial na segunda metade do século, como afirmava Ramalho Ortigão:
Na poesia, assim como na pintura e na música, não há uma escola portuguesa, porque na falta de laço social que congregue os nossos artistas, sem elementos coordenados de estudo, sem modelos patentes, sem lição comum, não há entre êles mùtuamente, nem entre êles e o povo de que derivam, comunhão alguma de ideal ou de sentimento.
Por igual razão não têm carácter nacional, sendo portanto destituídas de originalidade, e como tais inaptas para a luta da concorrência mercantil, tôdas as nossas indústrias. (Ortigão 1943, 127–28)
A conexão espanhola do “mudejarismo” português seria, entretanto, explorada de modo mais proveitoso no âmbito da da diplomacia cultural da segunda metade do século XIX. Destacavam-se a Exposição Retrospectiva de Arte Ornamental Portuguesa e Espanhola, realizada em Lisboa em 1882 e, mais ainda, sua progenitora conceitual, a Special Loan Exhibition of Spanish and Portuguese Ornamental Art realizada no South Kensington Museum (atual Victoria and Albert) no ano anterior.
A mostra londrina, na curadoria de John Charles Robinson, escancarava o incipiente desenvolvimento da arqueologia e da museologia portuguesas, em contraste com suas contrapartidas espanholas. Reforçava-se, assim, ainda que não intencionalmente, uma leitura da cultura material arqueológica em Portugal, e especialmente daquela do período islâmico, como derivativa de um universo pan-ibérico pendendo claramente para a primazia das regiões compreendidas na atual Espanha (Ferreira 2014, 100, 122). Já a exposição de 1882 destacou-se, na imprensa, precisamente pelo aspecto diplomático da visita de estado dos reis católicos a Portugal e da expectativa de aprofundamento dos laços comerciais e industriais entre os dois países (Ferreira 2014, 236).
O mudejarismo erudito: controvérsias historiográficas
As análises da primeira metade do século XX colocariam, porém, em xeque essa leitura, evidenciando a contribuição fulcral de artistas mudéjares — e possivelmente de moçárabes reabsorvidos no reino cristão — para o ornato românico e gótico no centro e norte de Portugal (Dias 1994, 55–59). Mesmo assim, persistiu, na bibliografia, o entendimento de um arabismo derivativo, em Portugal, seja no escopo da arte islâmica propriamente dita, seja naquele do mudéjar. Pedro Dias sugeriria, ao contrário, que “o que há em Portugal é um conjunto heterogéneo de obras que são fruto da extensão de escolas regionais espanholas” (Dias 1994, 52).
Foram determinantes para tanto os vínculos da arqueologia portuguesa, por seu viés etnológico, com a história da literatura, no início do século XX. A história literária, tal como concebida desde a segunda metade do século XIX, exerceu papel preponderante na construção de uma narrativa nacionalista estruturante para as primeiras campanhas de documentação arqueológica e arquitetônica em Portugal. Esta narrativa enxergava no centro-norte do país um núcleo cultural resiliente, de matriz pré-romana, que não teria sido significativamente fertilizado pela influência islâmica. Tal argumento se refletiu nas invectivas dos mais diversos autores e críticos contra a teoria inversa, batizada de “moçarabismo,” propalada por Teófilo Braga.4
Por contraste, o princípio de um núcleo nacional isento de contaminações arabizadas relegaria às extremidades do território a possibilidade de se encontrar um impacto significativo da cultura hispanomuçulmana. Ironicamente, as evidências arqueológicas para uma significativa formação cultural mourisca e mudéjar no Alentejo compareceriam somente nos grandes esforços de documentação de meados do século XX (Silva 2014, 8–16), os mesmos que refutaram a tese em questão ao evidenciar a contribuição da arte mudéjar no centro-norte de Portugal medieval. Pedro Dias organizou as evidências conhecidas, situando nas Beiras e Trás-os-Montes os mais antigos exemplares até então identificados de arte mudéjar em Portugal. Mais ainda, evidenciou sua importância na construção de monumentos românicos como a obra inicial da Sé Velha de Coimbra (Dias 1994, 56–59).
O que não foi posto em questão pela historiografia recente, por outro lado, é a caracterização da arte mudéjar erudita em Portugal como consistindo, essencialmente, de um número restrito de elementos formais singulares, não influindo na concepção formal de qualquer obra de arquitetura no seu todo. Dentre os elementos formais convencionados como marcadores do mudejarismo, ganham perene relevo os arcos ultrapassados, por vezes com intradorso rendilhado — esta última variante vincula-se, sobretudo, ao neomudéjar de importação manuelina.
Também são reconhecidos os alfarjes com laçaria geométrica, epítome da marchetaria ornamental; neste caso, a historiografia recente tem dado relevo à identificação dos respectivos artífices nas fontes escritas, evidenciando a presença continuada de artesãos muçulmanos no reino cristão de Portugal até ao menos finais do século XV (Dias 1986). Seria no emprego do alfarje e no dos azulejos que ficaria patente o impacto duradouro da arabização na arte erudita portuguesa, viajando com a expansão territorial do reino para dominar, ainda que com técnica simplificada e iconografia abastardada, os programas decorativos da arquitetura religiosa nas ilhas do Atlântico (fig. 9) e no Brasil.
Figura 9: Teto em alfarje na nave central da Sé do Funchal, início do século XVI. Foto: Hajotthu, 2013
Mais recentemente, a ocorrência do aximez tem sido apontada como marcador por excelência do atual entendimento da arquitetura ibérica medieval como uma manifestação de sincretismo cultural e de apropriações intencionais de certos elementos, remetendo a associações políticas ou culturais prestigiosas. De fato, este elemento comparece com frequência na arquitetura dita asturiana, ou pré-românica leonesa, que acompanhou os primeiros passos do estabelecimento dos novos reinos cristãos do planalto do Douro até a Beira alta nos séculos IX e X (fig. 10).5
Figura 10: Aximez sobre a nave da igreja matriz de São Pedro de Lourosa, Beira Alta, 912. Foto: G. Freihalter, 2016
Dentre eles, Oliveira Martins, cujo artigo póstumo refletia debates nos quais se engajara em vida, e mesmo o brasileiro Sílvio Romero. (Martins 1953; Romero 1906).↩︎
Paulo Almeida Fernandes considerou a igreja matriz de S. Pedro de Lourosa (Oliveira do Hospital, a leste de Coimbra) como um exemplar de revivalismo asturiano, pois resgatou no século X elementos artísticos, como o próprio aximez, originários de meados do século IX. Tal leitura reforça o papel deste elemento como marcador intencional de identidade cultural. (Almeida Fernandes 2017, 45–47).↩︎
A ênfase total neste âmbito dos elementos formais individualizados tornou-se um curioso reminiscente do colecionismo museal oitocentista tardiamente incorporado à história da arquitetura. Tentativas de ultrapassar esse registro caíram, porém, no outro extremo, tributário da teoria historiográfica germânica da empatia (Einfühlung), frequentemente associada — de modo questionável — à obra de Heinrich Wölfflin e ao seu conceito de uma “história da arte sem nomes [de artistas].”6 Assim, Helder Carita especularia, acerca de um grau mais profundo de influência árabe nas artes decorativas de Portugal, de modo um tanto obscuro e abstrato:
Sem um conceito de espaço como forma a priori da intuição intelectual, gerador de toda a arquitectura programática e preconcebida, o espaço em Portugal estrutura-se numa forma orgânica pela subtil sobreposição de níveis formais. Desconhecendo-se a necessidade lógica de causa e consequência, o espaço decompõe-se numa sucessão inesperada de situações autónomas, mas interdependentes. (Carita 1999, 43)
A proposição, que não deixa de ser instigante numa visão de conjunto, deixa entretanto abertas todas as interrogações que se possa ter sobre um entendimento mais orgânico e concreto do que seria um estilo mudéjar em Portugal.
Como consequência do predomínio, até a segunda metade do século XX, da tese de que o “mudejarismo” português seria, senão um mero ruído diplomático da era manuelina, ao menos um estilo derivativo de influências espanholas mais diversificadas, a identificação de características hispanomuçulmanas na arquitetura vernácula, com continuidade orgânica na era moderna, acabaria deslocada para os olhares que versaram sobre a periferia do mundo português. O Sul de Portugal continental, e especialmente as províncias do Alto Alentejo e do Algarve, além das ilhas do Atlântico, foram lugares privilegiados para o exercício desse olhar que buscava dentro do próprio corpo geográfico da nação uma alteridade cultural marcante.
Deixando o âmbito da arte erudita para priorizar a arquitetura vernácula, a documentação levada a cabo ao longo do século XX, por vezes com intenções operativas, encontrou no Algarve um tipo de morada em sintonia com os vieses estéticos comuns a diversos movimentos de renovação arquitetônica, modernistas no sentido estrito ou não (Agarez 2016). A casa algarvia, com sua geometria compacta, estrutura monolítica em taipa, e cobertura formando açoteia (fig. 11), correspondia a um certo ideal de unicidade cultural mediterrânica que perpassava, sem um marco cronológico nitidamente definido, as culturas ibéricas e árabes — mas que era sancionada também pelo gosto germânico da época (Piacentini 1996), fato crucial na hierarquia crítica da primeira metade do século XX.
Figura 11: Açoteias no bairro do Consórcio português da conserva do peixe, arquiteto Eugénio Correia, Olhão (Algarve), 1935–1938
Foto: Estúdio Horácio Novais. Acervo FCG Biblioteca de Arte
À semelhança da expansão ultramarina do reino de Portugal, o mudejarismo erudito e a arabização vernácula da cultura lusa não teriam se limitado à península Ibérica, mas teriam viajado em segunda mão, como parte da cultura portuguesa quinhentista. Para além da verificação de elementos ornamentais mudéjares nas vilas portuguesas fundadas nas ilhas do Atlântico norte, a identificação de elementos arabizados vernáculos no Brasil comparecera, já no século XIX, como um tema marcante na elaboração de uma narrativa sobre a identidade cultural da antiga América portuguesa.
O Brasil mourisco dos viajantes
Debret, cujas memórias do Brasil já foram tratadas mais acima do ponto de vista do espaço doméstico, dedicou também escassas linhas e vários desenhos ao aspecto estético da arquitetura. As cenas da paisagem urbana e suburbana desenhadas pelo artista, incluindo algumas aquarelas não estampadas no livro, transmitem o estranhamento do viajante metropolitano diante da periferia cultural da civilização europeia. A estrutura narrativa oferecia um explícito roteiro de “progresso” cultural segundo o entendimento europeu. O texto ilustrado ia desde a descrição da cultura indígena (volume 1) à escravização dos africanos como instrumento de desenvolvimento econômico (volume 2) para culminar na implantação na América tropical de uma civilização de cariz europeu, com seus marcos arquitetônicos e seus símbolos políticos e religiosos (volume 3).
Os contrastes enfatizados nesta organização textual deixavam clara a discrepância entre o que Debret dizia ser o “gosto português” e o “bom gosto” do neoclassicismo francês (Debret 1839b, 3:6). Na descrição das sucessivas intervenções levadas a cabo no paço imperial da Quinta da Boa Vista por arquitetos portugueses e estrangeiros, transparece o superficial conhecimento francês sobre a cultura portuguesa, que Debret poderia ter adquirido em segunda mão a partir de autores como Charles Frédéric de Merveilleux. Este, em publicação anônima, não deixara de observar, como outros autores europeus, o “gosto mourisco” do palácio da vila de Sintra (Merveilleux 1738, 1:97).
Fazendo uma espécie de sinédoque cultural, Debret tomou então o mudéjar de Sintra como sendo um caráter orientalizante geral do “gosto português,” afastando este, assim, do círculo cada vez mais estreito definido pela teoria arquitetônica do neoclassicismo. No contrapé, portanto, das pretensões europeizantes que o neoclassicismo pombalino e mesmo a “viradeira” mariana nutriam para a paisagem urbana portuguesa como um todo — já firmemente implantados no Rio de Janeiro graças aos engenheiros José Fernandes Pinto Alpoim e José Custódio de Sá e Faria, entre outros —, Debret ainda enxergava na obra de seu contemporâneo Manuel da Costa “detalhes dum estilo mais moderno, mas ainda barroco, e tributário do gosto português, fortemente mourisco” (fig. 12).7
Figura 12: Jean-Baptiste Debret. Paço da Quinta da Boa Vista em São Cristóvão, Rio de Janeiro, c. 1826 (Debret 1839b, pl. X)
A leitura depreciativa deste “gosto mourisco” será talvez menos surpreendente, dada a vinculação teórica de Debret, do que a própria possibilidade de se enxergar um cariz hispanomuçulmano numa obra erudita, executada em sintonia com a tendência classicista promovida pelo poder dominante no mundo luso-brasileiro no início do século XIX. Meramente desconsiderar tal associação como sintoma da estreiteza doutrinária neoclássica pode ser, aqui, menos interessante do que usá-la como ponte para partir, desta descrição depreciativa explícita, para as leituras implícitas da arquitetura vernácula que transparecem na obra de Debret.
Figura 13: Henry Chamberlain. Uma historia, 1822 (Chamberlain 1822)
De fato, Debret tratou da arquitetura vernácula do Rio de Janeiro sob um viés mais social do que artístico, como abordado anteriormente no que diz respeito à varanda. Neste locus privilegiado da sociabilidade doméstica, Debret evocava o determinismo geográfico e climático que, extraído de Winckelmann, se fazia presente na teorização de Quatremère de Quincy, ainda vivo quando da publicação do Voyage pittoresque et historique au Brésil. Ao mesmo tempo em que associava a existência da varanda à necessidade de ventilação das casas, e após sucinta menção à loggia italiana, no entanto, Debret insistia no vínculo da varanda brasileira com a “galeria mourisca”:
A face externa desta galeria, relativamente baixa, se compõe de um muro em silharia sobre o qual são apoiadas algumas colunas muito curtas, espessas e de estilo mourisco, sustentando um friso protegido pela enorme projeção das longas telhas semicilíndricas de sua cobertura.8
O “estilo mourisco” das colunas seria desconcertante para um classicista moderno, que enxergaria na litografia simples colunas toscanas, talvez menos esbeltas do que manda o cânone. No conjunto dos desenhos de Debret, todavia, observa-se a recorrência de outros marcadores orientalizantes: mormente as portas com bandeira em arco conopial, forma de extração manuelina, porém presumivelmente incomum para quem não tivesse grande interesse no estudo do tardo-gótico. A “enorme projeção” dos beirais, associada à característica curvatura das águas dos telhados, exacerbada nas extremidades dos espigões, por outro lado, era um elemento insistentemente representado por Debret em suas ilustrações de arquitetura vernácula. Os desenhos, que pecam por um certo exagero caricato, por isso mesmo enfatizaram um elemento de orientalismo genérico — visto seu nome corrente em português, de “telhados chineses” — que o classicista blasé poderia ter incluído na conta do “mourisco.”
Wölfflin (1948). A adesão de Wölfflin à teoria da empatia fora mais forte em sua tese de doutorado, declinando ao longo de sua carreira subsequente. Ver Wölfflin (1886).↩︎
“[…] des détails d’un style plus moderne, mais encore bizarre, et tenant du goût portugais, lourdement moresque.” (Debret 1839b, 3:6).↩︎
La face extérieure de cette galerie, assez basse, se compose d’un mur d’appui sur lequel posent quelques colonnes très-courtes, grosses et d’un style moresque, soutenant une frise abritée par l’énorme saillie des longues tuiles demi cylindriques de sa couverture. (Debret 1835, 2:42)↩︎
A leitura depreciativa de Debret quanto às reminiscências hispanomuçulmanas na arquitetura luso-brasileira enfatizou o caráter periférico da civilização portuguesa no Ocidente neoclássico. Essa formulação do “gosto” como instrumento de hierarquização da arte, e a associação deste gosto com a adesão a priori a um determinado corpus teórico já estava, porém, num percurso descendente a esta altura. O encerramento do ciclo de europeização da arte portuguesa, com o triunfo do classicismo à francesa no início do século XIX, imediatamente abriu as portas para um novo ciclo de arabização artística e arquitetônica (fig. 14).
Figura 14: Joaquim da Costa Lima. Palácio da Bolsa, sede da Associação Comercial do Porto, 1842–1848. Foto: Aurélio Paz dos Reis, anterior a 1894
Paradoxalmente, este novo ciclo era, também, derivado de influências europeias: calcava-se no exotismo orientalista que entusiasmava, desde finais do século XVIII, pelo Reino Unido, ao qual se uniram na primeira metade do XIX, com maior ou menor afinco, os demais centros de difusão cultural da Europa ocidental: França, Norte da Itália, Alemanha e Espanha. A invectiva de Debret contra o “gosto mourisco” português precedia em apenas duas décadas a classificação laudatória deste gosto como “mudejarismo” na Espanha por Manuel de Assas y Ereño e por Amador de los Ríos (García Nistal 2011).
O neo árabe chegaria a Portugal, muito a propósito, por Sintra e pelas mãos do rei consorte alemão, D. Fernando II, ao reformar seu patrimônio pessoal, o antigo convento mudéjar manuelino da Pena, seguido de um industrial inglês, Francis Cook, que transformaria o palácio de Monserrate numa espécie de Brighton Pavilion das serras. Os meios de expressão do neomudéjar oitocentista seriam análogos àqueles do “mudéjar de importação” manuelino: elementos iconográficos da arquitetura erudita, destinados à ambientação de espaços ou mesmo superfícies considerados individualmente (fig. 15).
A partir de finais do século XIX, os estudos etnográficos dariam ensejo a uma tímida busca pelo legado árabe na cultura vernácula — de modo periférico, pois a sua preocupação central continuava a ser a identidade nacional portuguesa, tida como incompatível com a “superficial” presença árabe na Península. Refletida de modo incipiente nas “casas marroquinas” de Raul Lino desde a primeira década do século XX (Lemos 2012), essa busca ganharia ímpeto com a busca pelas raízes vernáculas de um estilo arquitetônico nacional.
Seu maior sucesso ocorreria, porém, no Brasil, onde o reconhecimento da herança islâmica assistiria, ainda que tardiamente, o prócer neocolonial José Marianno Filho na formulação de justificativas sociais e climáticas para o movimento (Marianno Filho, n.d.). A partir daí, a gelosia montada em rótulas e formando parte de um muxarabiê passaria a ser um ícone incontornável da arquitetura vernácula colonial (fig. 16). De exemplo de adequação ao clima a marcador da sociabilidade privatizada e escravista, a historiografia (Marins 2001) deu a essa reminiscência árabe na morada vernácula brasileira um protagonismo inigualado pelos revivalismos anteriores.
Figura 16: Muxarabiê no solar Monjope, de José Mariano Filho, 1920–1928, baseado em documentação por Nereu Sampaio, Nestor de Figueiredo, Ângelo Bruhns e Lucio Costa. (Marianno Filho, n.d.)
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Ao longo destes últimos anos investigadores da Universidade de Granada temos vindo a realizar um trabalho historiográfico e análise de campo, que tem permitido a publicação de pesquisas sobre os edifícios neoárabes da América Latina, nomeadamente aqueles relacionados ou influenciados pelos palácios da Alhambra de Granada. Além disso, como uma tarefa de transferência do conhecimento, projetamos uma exposição itinerante que esteve em várias cidades da Espanha (Granada, Armilla, Santa Fé e Madrid), bem como em Amã (Jordânia) e Brasília (Brasil), em formato virtual. Você pode visitar (https://exposicion2.andaluciayamerica.com/)
Através desta exposição nos aproximamos, como já assinalamos, do rico patrimônio latino-americano que se inspirou na Alhambra de Granada e noutros importantes edifícios da herança do al-Andalus, feitos fundamentalmente entre a segunda metade do século XIX e o primeiro terço do século XX.
Essa estética, que nomeamos “neoárabe”, teve importantes estudos na Europa e nos Estados Unidos, mas não foi abordada no campo latino-americano, exceto em projetos específicos. É verdade que o espaço geográfico que estudamos responde histórica, politica, social e economicamente a outros parâmetros diferentes aos que têm produzido o orientalismo na velha Europa, mas seus resultados estéticos são surpreendentes. Se bem as condições dos diferentes territórios e constituintes também variam, aproximando-se algumas às propostas europeias ou, ao contrário, à procura de outras razões ideológicas que convergem tanto na concretização formal quanto em suas características simbólicas.
Palacete Rosa. Sao Paolo (Brasil).
O estudo de campo que temos desenvolvido revelou a existência de um enorme patrimônio orientalista que se espalha ao longo da geografia americana e que inclui tipologias arquitetónicas muito variadas. Assim, vimos a propor neste texto uma avaliação da disparidade de desenhos em relação às suas funções, sublinhando, através de títulos, as arquiteturas residenciais, institucionais e de lazer. Ao mesmo tempo, salientamos um subcapítulo especifico para as construções que foram originadas por coletivos de Peninsulares emigrados: praças de touros (com caráter “neomudéjar”), “casas da Espanha” ou elementos singulares copiados diretamente do Alhambra.
Embora tenham compartilhado elementos próprios da estética orientalista desenvolvida no norte da Europa, para o caso americano, ao apogeu do “alhambrismo” contribuem um grande número de arquitetos formados e que viajaram pela Europa. Por outro lado, também é preciso fazer atenção às referências nas revistas de arquitetura e à literatura com grande sucesso como Tales of the Alhambra Washington Irving ou as histórias das Mil e Uma Noites na Corte de Bagdade de Harun al-Rashid, bem como os pavilhões efêmeros das exposições internacionais; e, obviamente, não se pode esquecer o Orientalismo pictórico, transferido através de gravuras, revistas, cartões postais ou das próprias obras de pintores conhecidos como Genaro Pérez de Villaamil e Mariano Fortuny que começaram expandir seu mercado nas capitais americanas.
Também formaram parte dos meios de difusão, muitos estudiosos burgueses, que fizeram longas estadias de formação na Europa, onde conheceram os edifícios neoárabes ingleses e franceses, bem como os vestígios originais do al-Andalus na sua obrigatória viagem a Espanha e Andaluzia. Dessas viagens, às vezes, retornavam com objetos móveis ou elementos para que foram incorporados nas arquiteturas que estavam a construir nos seus países, como cerâmicas ou gesseiras, o que permitiu a presença de elementos originais transferidos. Ao respeito destacar-se-ão, diferentes fabricas de materiais de construção europeias cuja principal linha de financiamento foi a exportação à América, como algumas das fábricas de cerâmica vidrada de Sevilha.
Esta herança americana está ligada, em muitos casos, como já tínhamos assinalado, à origem hispânica dos seus comitentes, emigrantes que procuravam a lembrança da sua terra quando encarregavam a construção das suas casas a arquitetos que tinham viajado pela Europa. Além disso, as comunidades sírio-libanesas que chegaram à América no primeiro quartel do século XX optarão também pela estética “neoárabe” para seus edifícios.
Todos esses fatores contribuem para a proliferação desta arquitetura orientalista, sem precisar de requisitos arqueológicos ou filológicos rígidos, mas com adaptações às suas condições construtivas, suas necessidades, sua climatologia e seus estilos de vida. Isto implica que o usado, por exemplo em Granada nos interiores, tornar-se fachadas, ou a ausência de cor nas paredes da Alhambra tornar-se num cromatismo muito rico, próprio do Caribe.
Tratava-se de tentar fazer uma coisa diferente, fugir da vulgaridade, criando pequenos paraísos artificiais, quase mágicos, onde não faltava o mito pecaminoso e voluptuoso do mundo islâmico. Ora, não podemos confundir esses valores com a proliferação pela América Latina de construções em contextos kitsch, não apenas em referências formais, mas também com os abusos nominais, procurando o exótico dos termos, que caracterizam espaços de lazer de diferentes nuances, desde hotéis até restaurantes ou sórdidos estabelecimentos que não respondem a nenhuma das avaliações culturais relacionadas à cultura orientalista ou histórica.
Por outro lado, devemos valorizar essas construções para a própria identidade das repúblicas americanas, que não são entendidas como simples “loucuras” atemporais, mas como a receção estética de propostas modernas nessa altura, e testadas positivamente na história da arte universal. Nem todos os edifícios listados aqui estão protegidos pelas legislações patrimoniais dos lugares onde se assentam, por isso é necessário re-significar essa arquitetura produzida nos últimos anos do século XIX e na primeira metade do século XX para que seja integrada na consciência coletiva como parte integrante de sua cultura, e aprofundar e julgar o conceito de “exótico” com o qual eles são qualificados superficialmente.
Criar uma compressão e proteção social que impede a destruição. A perceção de seus valores culturais, e sua proteção legal garantirá a sobrevivência dessas obras, das quais, infelizmente, um número significativo desapareceu. É necessário chamar a atenção dos líderes culturais dos diferentes países para que forneçam os instrumentos legais necessários para garantir sua conservação, correta interpretação e valorização identitária.
Durante o século XIX, a celebração de exposições universais tornou-se um campo de experimentação para a arquitetura. Os países participaram com pavilhões, em sua maioria de caráter efêmero, caracterizados por um olhar diferenciador, baseado na interpretação historicista. Esses edifícios foram projetados não apenas através das tradições locais, mas também tomaram emprestado do passado alheio às suas identidades.
Neste panorama, o gosto pela orientalização encontrou um amplo palco na celebração desses concursos internacionais. Para citar alguns dos exemplos mais significativos, mencionaremos as arquiteturas egípcias e turcas na Exposição Universal de Paris em 1867, a seção e o bairro otomano em Viena em 1873, a de Paris em 1878 em que um bazar oriental foi recriado no Trocadero e o de 1889, também na capital francesa, com um mercado na esplanada dos Invalides junto a casas árabes, ruas do Cairo e um distrito islâmico novamente no Trocadero.
No entanto, foi na Exposição Universal de Paris, em 1900, que a presença dos “mouros” teve mais impacto e, juntamente com pavilhões de clara inspiração egípcia, otomana e persa, contribuiu para a construção do Palácio da Eletricidade, com o seu interior orientalizante. Nele destacou uma reprodução de “La Giralda” de Sevilha, que fazia parte dum recinto construído pelo arquiteto Dernaz, perto do Trocadero, chamado “Andaluzia no tempo dos mouros”. Naquele espaço foram reproduzidos elementos da Alhambra, do Sacromonte de Granada, de “La Giralda” e dos Alcázares de Sevilha.
A Espanha, e especificamente a Andaluzia, já havia sido amplamente incluída no território exótico e orientalizante dos viajantes românticos. Para os olhos destes, a Andaluzia representava a sobrevivência no velho continente de modos de vida e de personagens anacrônicos que provocavam um fervoroso deleite. A Andaluzia, além dos bandidos e dos ciganos, do perigo dos caminhos e outros estereótipos, tinha como singularidade uma rica herança arquitetónica islâmica.
Neste contexto, o neoárabe se tornaria repetidamente a imagem da Espanha em eventos internacionais, como aconteceu com o seu pavilhão na exposição de Bruxelas de 1910 e, no caso que nos interessa, em clubes e prédios de coletividades espanholas na América. Neste sentido, poderíamos mencionar arquiteturas como o Clube Espanhol de Iquique (Chile), projetado e construído em 1904 por Miguel Retornano em estilo mourisco, que inclui no seu interior uma exagerada e cromática decoração.
Em 1912, em Buenos Aires, o arquiteto Enrique Faulkers projetou o Club Espanhol que incluía na cave um espetacular “Salón Alhambra”, cujas paredes eram pintadas pelo argentino Francisco Villar e pela francesa Léonie Matthis, que se conhecera dois anos antes em Granada. Tratava-se de uma vista panorâmica da cidade, desde o miradouro de San Nicolás, que abrangia um círculo de 360º. Atualmente esses murais estão repintados, tendo perdido sua qualidade original, embora preservem os motivos pictóricos. Em 1913, em Villa María, Córdoba (Argentina), foi construída em estilo mourisco a Associação Espanhola de Ajuda Mútua. Anteriores aos mencionados é o edifício da Sociedade Espanhola (1867-1905) do Paraná (província de Entre Ríos), também caracterizado pela sua marca neoárabe.
Salón Alhambra del Club Español. Buenos Aires (Argentina).
Outra referência sobre a vinculação do “espanhol” ao estilo neoárabe é o Pavilhão Mourisco doado pela comunidade espanhola para o Peru em 1921, por ocasião do seu centenário e foi exibido no Parque das Exposições. O mesmo, destacar-se-á por um grande arco em ferradura bicolor como os arcos da Mesquita de Córdoba, que foi reconstruído em 2000 acrescentando-lhe um átrio perimetral. Em 1923, no ano do centenário da cidade de Tandil, na província de Buenos Aires (Argentina), a comunidade espanhola doou à cidade um castelo mouro que foi localizado no topo do Parque da Independência, a um quilômetro do forte onde foi fundada a cidade.
Outra área onde a influência hispânica esteve muito presente foi na construção de praças de touros, onde, como aconteceu com outras similares na Espanha, a referência pioneira foi a nova de Madrid, que se construíram em 1874, na rua Alcala, Emilio Rodríguez Ayuso e Lorenzo Alvarez Capra, no ano a seguir no que ele tinha construído o pavilhão espanhol da exposição de Viena. Esta praça, que faz parte da tipologia neomudéjar, foi feita em tijolo, e tem influenciado importantes edifícios americanos como a “Plaza de San Carlos”, no Uruguai, que foi inaugurada em 1909, ou a de “Santa María” de Bogotá, projetada pelo arquiteto espanhol Santiago Mora, aberta em 1931.
Na Colômbia, além da já citada de Bogotá, destaca-se a praça de touros de “La Macarena”, em Medellín. De datas mais recentes e de tecnologia avançada destaca a “Plaza de Toros Granada”, pertencente à Escola de Toureio de Cali, cuja principal característica é ser a “mais moderna praça portátil” que existe no país. Foi projetada e construída em Toledo (Espanha) a partir de uma estrutura metálica sólida, com capacidade para 4.000 espectadores. Em seu desenho, como esperado, não há falta de arcos mouriscos. Venezuela também possuiu exemplos notáveis, destacando o “Nuevo Circo” de Caracas (1919), ou a “Plaza de Toros de Maracay” (1933), de Carlos Raul Villanueva, arquiteto por excelência da modernidade no país.
Outro elemento onde a influência do alhambresco esteve muito presente, foi em diversas cópias da Fonte dos Leões localizados dentro espaços arquitectónicos emblemáticos ou em espaços públicos. Podemos destacar pela sua importância, o edifício Alhambra em Santiago do Chile, a da Casa de Espanha em San Juan de Puerto Rico, e até mesmo algumas de corte popular, como uma localizada numa casa em Camagüey em Cuba.
Apesar de não ser o tônico dominante, a arquitetura institucional não será alheia à corrente orientalista. Busca em suas formas, em seus modelos decorativos, soluções para erguer edifícios públicos, seja com funções culturais, de serviços ou desenhos diretamente relacionados ao exercício do poder. Enquanto o repertório arquitetónico institucional não é comparável em número aos exemplos de vilas ou palácios preservados, a singularidade de muitos mostra que o gosto pela estética, principalmente alhambresca, não só pode ser associado patrocínio privado.
Assim, alguns arquitetos souberam projetar com essas linguagens exóticas e alheios para o país, comissões institucionais entre a segunda metade do século XIX e os primeiros anos do século XX, que acabaram simbolizando a identidade nacional em certos casos.
O fascínio pela Alhambra de Granada, a Giralda de Sevilha, a Mesquita de Córdoba e outras marcas arquitetónicas orientais, sem ignorar a forte influência que produziu o “Alhambra Court” de Owen Jones, que levou a proliferação estendida, por exemplo, dos pavilhões mouriscos nas Exposições Universais. Um dos pioneiros em solo americano foi apresentado pelo Brasil para a Exposição de Philadelphia (1876), mas muito mais significativo foi o conhecido como o Kiosko de Santa María de la Ribera, pavilhão com que o México foi apresentado na Exposição Mundial da Indústria e do Algodão de Nova Orleans (1884). Seu desenho, feito por José Ramón Ibarrola, pode ser considerado a amostra mais luxuosa do imaginário oriental mexicano. Embora Ibarrola não tenha viajado para a Europa, sua amizade com Eduardo Tamariz, mestre por excelência do neoárabe no México, e o conhecimento de outros pavilhões mouros feitos antes, serviram como fontes de inspiração. O amálgama de elementos utilizados, ameias, arcos de lóbulos, capitais cúbicos e um brilhante e rico cor, reforçado pela modernidade dos materiais utilizados, fizeram na época que fora conhecido como “a Alhambra mexicana”.
Kiosco de Santa María de la Ribera. Ciudad de México (México).
Às vezes, o orientalismo era aplicado em pequenas áreas interiores, à imagem e semelhança de alguns espaços específicos da Alhambra; em outras ocasiões, o olhar íntimo penetrava no corredor para cobrir os exteriores dos edifícios, onde vãos e elementos decorativos emulavam formas muçulmanas. Dos primeiros conservamos o “Quarto mourisco” do Palácio Nacional do México, ou o localizado no Palácio Catete no Rio de Janeiro, que, após se transformar numa residência privada tornou-se a sede do Governo da República desde 1897 a 1960. Mais tardio na sua construção, é o chamado “jardim moro”, localizado no edifício da Assembléia Legislativa da Costa Rica. Iniciado por José María Barrantes em 1939, foi o arquiteto catalão Luis Llach que em 1943 iria imitar o paraíso do jardim muçulmano com este pátio, também conhecido como o “Jardim da Pátria Espanhola”.
Quanto ao segundo, temos o edifício do Tribunal Superior de Justiça Militar, de Lima, com claras influências mouriscas não só pelo uso de certos elementos arquitetónicos, mas também o próprio material de construção simula os silhares da Mesquita de Córdoba. Também em Campinas (Brasil) foi construido em 1908, o Mercado Municipal, projetado por Ramos de Azevedo, que usou duas cores o branco e o vermelho da arquitetura do califado nas suas paredes e nos arcos de ferradura que definem seus vãos. Da mesma forma, o chamado Edifício Nacional em Neiva (Colômbia), onde se destacam os arcos de ferraduras duplas e uma torre rematada por uma cúpula bulbosa.
Os exemplos acima mencionados nasceram para cumprir funções de natureza institucional. No entanto, existem outros que já foram construídos com outros usos quando se tornaram espaços de governo. Este foi o caso do Congresso de Puebla (México), localizada em um dos mais emblemáticos edifícios neoárabes da cidade, foi inicialmente sede da sociedade artística-filarmônica de “A Imaculada Conceição”, para a qual Eduardo Tamariz, em 1883, projetou um pátio cuja parte inferior inspirou-se na estética da Alhambra. Através de paredes cobertas com rodapés cerâmicos e gessos sobrepostos, arcos lobados emoldurados por alfiz, que funcionam como portas de acesso a diferentes espaços.
Os edifícios de representatividade pública não resistiram a emulação da Alhambra, a partir do “Palacio de las Garzas”, sede do poder executivo da República do Panamá, que foi o primeiro palácio do Governador espanhol na era vice-real. Precisamente um dos seus quartos mais valorizados é o Salão de fumantes, localizado na parte residencial da presidência, que não só manifesta seu orientalismo na decoração, mas também na sua mobília, por exemplo, nas cadeiras dobráveis como se fossem jamugas.
Da mesma forma, a arquitetura religiosa se rendeu à influência arabista, construindo ex professo alguns exemplos surpreendentes dentro da estética que rivalizam com o gosto pelo oriental. Neste sentido, destaca a Capela de San José, do arquiteto Cecil Luis Long, construído em 1893, dentro da Catedral de Leon (México). Como um espaço de “Qubba”, o neoárabe invade toda a decoração do espaço interior que rivaliza com as linhas neoclássicas que dominam o projeto genérico da catedral.
Igualmente surpreendente é a igreja de Nossa Senhora do Rosário do Trono, na cidade de San Luis (Argentina), construída em 1935, por iniciativa dos dominicanos. O exterior assemelha-se à entrada da mesquita de Córdoba, com um grande arco de ferradura enquadrado com alfiz e protegido por duas torres, como se fossem duas Giraldas. Dois monumentos arquitetónicos, por sinal, que nasceram como símbolos da religião islâmica e hoje permanecem como os principais templos do catolicismo em Córdoba e Sevilha.
Finalmente destacamos vários exemplos em que o Orientalismo se percebe basicamente, no interior, como a Basílica do Imaculado Coração de Maria, no Rio de Janeiro, construído pelo sevilhano Adolfo Morales de los Ríos; a Basílica de Nossa Senhora das Mercedes, em Nátaga (Colômbia); e, finalmente, a Igreja de San Juan Bautista em Pasto (Colômbia), exemplo tardio, dado que sua decoração é dos anos sessenta do século passado, da vigência do Orientalismo na América.
Patio de la Asamblea legislativa. San José de Costa Rica (Costa Rica).